terça-feira, 16 de novembro de 2010

A Festa da Santa Sara Kali - 24-25/05

Revista Geográfica Universal - Nº 187 - junho de 1990
Publicação Mensal de Block Editores

Camarga: As Festas das Santas do Mar

Texto de Antonio Callado de Paiva
Fotos de Bruno Barbey - Magnum

         
          A cidade de Saintes-Maries-de-la-Mer, no delta do rio Ródano, comemora todos os anos a chegada ao local das Santas Maria Jacobé, Maria Salomé e Sara - esta última, padroeira dos ciganos que para lá ocorrem. No dia 25 de maio, há uma grande procissão em que as imagens são carregadas por ciganos e protegidos pelos cavaleiros guardiões.

          Situada no Extremo Sul da França, entre os braços do Grande e do Pequeno Ródano, estende-se uma imensa planicie alagada: a Camarga. Sua configuração geográfica e seu clima a tornam uma terra onde a sobrevivência humana não se faz sem grande esforço. O vento varre a região com violência a maior parte do tempo, as chuvas, escassas, não ultrapassam os 500mm durante o ano e as altas temperaturas estivais provocam forte evaporação - conjunto de condições nada agradáveis. No entanto, mesmo diante de tantos desafios, o homem não recuou, alterando em parte a paisagem com a construção de diques e canais, e tornando o lugar habitável e economicamente produtivo.
         Embora a atividade principal da Camarga seja a criação de merinos (carneiros originários da África do Norte), produtores de uma lã de excelente qualidade, os camargueses mais aferrados às tradições não deixam de criar seus famosos cavalos e uma raça de touros que faz as delícias dos aficionados pelas touradas nas arenas de Nimes e da Espanha.
          Às vésperas das festividades em honra das duas Marias e da escrava Sara, os ciganos começam a chegar a Saintes_maries-de-la-Mer (foto maior). A maioria acampa na periferia da cidade em suas carroças coloridas ou em modernos trailers (embaixo).

 

          Os cavalos da Camarga não pertecem a uma raça comum. Para alguns, eles são os derradeiros descendentes da espécie que os homens do período magdaleniano (14 mil a 10 mil a.C.) imortalizaram em inúmeras pinturas nas grutas de Altamira, Font-de-Gaume, Trois-Frères e Lascaux. Já outros defendem teoria diversa: que esses belos cavalos tordilhos são parentes longínquos dos puros-sangues árabes deixados pelos sarracenos ao serem expulsos do território gaulês por Carlos Martel, em 732. A razão, como sempre, nesses casos, acaba pertencendo a todos, muito especialmente nas terras da Camarga, onde o real e o imaginário entrelaçam seus limites de maneira inexplicável.
         O culto dos camargueses a esses animais os leva a reaizar três festas em que os cavalos são os principais atores. A abrivalo, onde os cavaleiros mostram toda a sua perícia na separação dos touros jovens dos adultos; a ferrada, onde o jovem touro é laçado e imobilizado para a aplicação da marca do proprietário; e, finalmente, a corrida, onde os guardiões (cavaleiros) demonstram toda a sua perícia no manejo de suas montarias.
          A maior festa da Camarga, porém, é de caráter religioso. Ela se passa numa cidadezinha a poucos quilômetros do Pequeno Ródano - Les-Saintes-Maries-de-la-Mer, considerada uma das cidades-santas da Europa e destino de constantes e numerosas peregrinações.
           A razão para essas peregrinações se perde nas brumas do tempo. Reza a tradição provençal que por volta do ano 40 da nossa era Maria Jacobé (irmã da Virgem). Maria Salomé (mãe dos apóstolos Tiago Maior e João), Lázaro, o ressucitado, e suas duas irmãs, Marta e Maria Madalena, mais Maximiniano e Sidônio, um cego que Cristo havia curado, foram abandonados no mar pelos judeus de Jerusalém, num barco sem velas, sem remo e sem provisões. Sara, a serviçal negra das duas Marias, retida em terra, se desesperou. Ai aconteceu o milagre: Maria Salomé atirou seu manto à água, e o tecido flutuou, permitindo que Sara chegasse ao barco.
         Graças à proteção divina, a embarcação atravessou todo o Mediterrâneo e chegou à região da camarga, na praia onde hoje se ergue a Igreja das Santas Marias. Após construírem um pequeno oratório dedicado à Virgem, os discípulos de Cristo se separaram. Marta iria evangelizar Tarascon: Maria Madalena seguiu em peregrinação para Sainte-Baume, onde passou a viver numa gruta, isolada do mundo, a fim de pagar os seus pecados anteriores: Lázaro foi apostolar em Marselha: Maximiniano e Sidônio levaram as palavras de Cristo a Aix. Só as duas Marias e Sara permaneceram na Camarga. Quando elas morreram, os fiéis guardaram suas relíquias no oratório que haviam construído.
          As relíquias das duas Marias e de Sara se encontram na denominada Capela Alta da igreja de Saintes-Maries, dentro de uma cripta presa ao teto. Na tarde do dia 24 de maio, a cripta é descida e colocada sobre o coro. Para o fiel, tocar o relicário significa ganhar a proteção das santas e ter qualquer doença curada. Abaixo, a imagem de Sara, a escrava negra que se tornou padroeira dos ciganos. Eles vêm de todas as partes do mundo para venerá-la.



         No século IX, foi erguida uma igreja no lugar do velho oratório. No século XI, os monges de Montmajour estabeleceram ali um priorado, e cem anos depois reformaram a igreja, que foi incorporada às fortificações da cidade. Devido às constantes invasões, os restos mortais das santas foram enterrados sob o coro. Em 1448, René I, o Bom, Duque de Anjou e Conde de Provença, mandou escavar o local e as relíquias foram reencontradas. Realizou-se, então, uma cerimônia de que participaram o rei e sua mulher Isabel, o cardeal representante do papa, bispos, abades e grandes senhores de Provença. A partir daí, o culto às santas tornou-se objeto de um novo e maior fervor. O interessante é que, muito ecumenicamente, foram incorporados ao alto-mor da igreja um fragmento de um sarcófago pagão do século III e uma pedra do altar do também pagão deus Mitra.
          A partir dessa época, começaram a acontecer as peregrinações a Saintes-Maries-de-la-Mer. Hoje, aconteem duas grandes festividades na cidade: a primeira, nos dias 24 e 25 de maio, em homenagem a Maria Jacobé; a outra, no sábado e domingo posteriores ao dia 22 de outubro, em que se reverencia Maria Salomé.
          Em cada uma dessas festas, a cripta que contém as relíquias é colocada no alto do coro. No dia seguinte, as imagens das santas, precedidas por um grupo de arlesianos e cercada por guardiães, são levadas em procissão através das ruas de Saintes-Maries. No retorno da procissão, após a cerimônia das vésperas, a cripta é recolocada na capela.
         Toda essa festividade teria um caráter original mas pouco extraordinário se para ele não acoresse uma inesperada minoria. Não se sabe a partir de quando nem por quê, Sara, a serviçal das duas Marias, foi escolhida pelos ciganos como sua padroeira. Uma semana antes da festa de maio, eles começam a chegar a Saintes-Maries, vindos de todas as partes da Europa. As estradas do sul da França são tomadas por coloridas carroças ou moderníssimos trailers. As ciganas preparam suas mais belas roupas e jóias e dão início a um exuberante festival.


           Depois de desfilar pelas ruas de Saintes-Maries, as imagens das duas Marias são levadas até o mar, no local onde se acredita tenham desembarcado.


         A cada três ou quatro anos, dependendo do calendário próprio a essas comunidades itinerantes, Saintes-Maries-de-la-Mer é brindada com um espetáculo único: a eleição da Rainha dos Ciganos. Para tal circunstância, e segundo um protocolo extremamente rígido e não menos secreto, uma mulher é escolhida, sob as bençãos de Sara, para suavizar o destino dos que são obrigados a errar pelas estradas do mundo, vítimas de preconceitos.
         Nessa ocasião, a festa transcorre, ininterruptamente, por três dias e três noites. A presença dos guardiões da Camarga, montados em seus belos cavalos ou participando de disputadas corridas; as touradas; os arlesianos, reverentes na sua fé perante as relíquias das santas mulheres; as farândolas - tudo dá a esse momento um clima de nostalgia, de mergulho no passado distante que só sobrevive na vasta planície da Camarga.



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